Espírito de B-P
- Carlos Nascimento
- 27 de jun.
- 4 min de leitura

Uma canção comum em fogo de conselho é “De B-P trago o espírito”, nunca imaginei que para alguns isto fosse algo transcendente. Cada vez mais tenho lido pessoas se comportando como se fossem canais mediúnicos de Baden-Powell, seja psicografando o pensamento dele sobre qualquer atualização do programa educativo ou a prática escoteira, seja transmitindo aquilo que B-P diria. Muitas destas pessoas mal leram o Escotismo para Rapazes na sua última edição revista por B-P, e ele o revisou várias vezes, quem dirá ter lido artigos avulsos e a vasta correspondência dele disponível na internet.
Recentemente publiquei um comentário citando trecho de um livro de B-P que contraria totalmente as ideias das pessoas que estão misturando sua opção política com o Escotismo, justamente em uma postagem que criticava as mudanças e fantasiava misturando Brasil com Egito (se é que me entendem), a maioria silenciou, e houve quem perguntasse que livro era. O trecho foi retirado do Caminho para o Sucesso e mostra um lado, digamos assim, mais progressista de B-P, que era um homem à frente do seu tempo.
Essas pessoas que canalizam o espírito de B-P parecem aquela velhinha americana que dizia que Jesus era americano porque a Bíblia que ela lia estava em inglês. Mas no caso delas muitas vezes nem mesmo são capazes de analisar o contexto de algum escrito de Baden-Powell, porque elas não se deram ao trabalho de ler a obra dele, estas pessoas fazem o recorte de um imaginário construído a partir de comentários de outros em redes sociais. Um exemplo é quando associam escotismo a cristianismo sob a alegação que B-P era anglicano. Se tivessem dado uma olhada na edição indiana do Escotismo para Rapazes, na qual o fundador teve um especial cuidado sobre o tema religião, estes iluminados leriam o seguinte “Em todos os países, seja na Índia ou em qualquer outro, religião significa fazer o seu dever para com Deus, e isto em grande parte consiste em servir aos seus semelhantes”, Antes ele já havia escrito “Resumidamente não apoiamos qualquer uma das formas de professar a fé mais que outras, procuramos um caminho para colocar este princípio em prática como fazemos em outros ramos da educação, ou seja, colocamos os jovens em contato com seu objetivo de fazer seu dever para com Deus por intermédio de seu dever para com o próximo” (The Scouter, janeiro 1912), sim ele associa religião à um conceito maior, àquilo que hoje chamamos de espiritualidade.
Muitas vezes os Baden-Powells reencarnados resumem a sua visão de Escotismo às artes mateiras, ao fazer coisas práticas, descartando que as artes mateiras são meios, não fins em si mesmas, e isto é auto explicativo do título completo das primeiras edições do Escotismo para Rapazes, um manual de instruções para a boa cidadania através das artes mateiras. Qualquer visão um pouco mais educativa, no sentido até mesmo pedagógico é deixado de lado, ou combatida. Baden-Powell foi contemporâneo de Maria Montessori, e trocou correspondência com ela. Em junho de 1939 escreveu para Montessori a respeito de um experimento que ela fazia ao aplicar o método escoteiro na educação e crianças abaixo da idade de lobinhos, o que seria hoje o Ramo Filhotes na UEB.
“Prezada Dra. Montessori, ouvi com grande interesse elogios aos princípios do Movimento Escoteiro e como a senhora os teve em mente ao elaborar seu plano para a educação de crianças abaixo da idade e mentalidade dos Lobinhos. Fico muito feliz em saber que o experimento está se mostrando bem-sucedido. ”
Se analisarmos o método montessoriano este tem aspectos coincidentes com o método escoteiro, como a educação para autonomia, a autoeducação e o desenvolvimento integral.
Quando estas pessoas reinterpretam B-P geralmente carregam em suas falas todos os juízos prévios de suas convicções políticas, principalmente no tocante ao fortalecimento dos aspectos educativos, não raro trazendo à baila Paulo Freire, muito citado e pouco lido.
Certa feita em uma rede social um destes iluminados criticava o que ele dizia ser a influência do método Paulo Freire no Escotismo, ao responde-lo nem mesmo principiei pelo básico, que era se ele sabia que o método Paulo Freire era destinado à alfabetização de adultos, perguntei a ele se havia lido algum livro de Paulo Freire, sendo positiva a resposta, perguntei o que ele achava de determinados trechos que eu colocara, naturalmente criticou sem perceber que os trechos foram extraídos do Guia do chefe Escoteiro.
A maneira que algumas dessas pessoas criam divergências no Escotismo lembram um outro artigo de B-P o The Scouter intitulado Tempestade em Copo d’água, escreveu Baden-Powell em março de 1911:
“Eu não brinco de mais nada em seu quintal”, era o refrão de uma encantadora canção, coisa muito típica de criança que não gosta da maneira que uma brincadeira está se desenvolvendo, e no final das contas, “faz uma cara emburrada” e vai tentar outra brincadeira em outro lugar, ou então vai “contar pra Mamãe”. Isto faz um expectador adulto sorrir, mas ele mesmo não está livre desse tipo de vaidade egoísta. Eu frequentemente estive no papel da “Mamãe”, e é quase inacreditável que pessoas adultas ou quase adultas possam tratar coisas insignificantes tão a sério e tão mesquinhamente como fazem alguns. Se eles tivessem um pouco de senso de humor ou uma visão mais abrangente, poderiam ver o outro lado da questão ou o objetivo maior, e também iriam rir da pequenez dessas coisas”
E assim ele finaliza o artigo:
“Nos primeiros dias do nosso Movimento havia muitas pequenas disputas locais que eram realmente secundárias na maioria dos comitês, e que nunca ocorreriam se os membros pudessem se lembrar de seus deveres e agir de acordo com eles. Ultimamente, porém, essas sociedades contestadoras parecem ter diminuído, dando lugar para conselhos de mútua cooperação e ajuda, e tudo caminha bem”
Infelizmente hoje, em tempos de cortes para as redes sociais, as pessoas não se preocupam em analisar mais profundamente as questões, como dizia B-P "olhar os dois lados do casaco", o que interessa é demonstrar a sua opinião escudada em corte de falas alheias, em achismos e frases soltas de Baden-Powell. E ai
de quem discorde delas.
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