Os herdeiros de Baden-Powell
- Carlos Nascimento
- 10 de fev. de 2021
- 4 min de leitura

De vez em quando me deparo nas redes sociais com debates sobre Escotismo nos quais os debatedores parecem tentam mostrar quem melhor e mais encarna o espírito de Baden-Powell e quem é mais fiel ao pensamento do fundador do Movimento Escoteiro.
Nestes debates há aqueles que somente consideram verdadeiro aquilo que Baden-Powell escreveu nas primeiras edições dos seus livros. Especialmente o Escotismo para Rapazes, não importando quantas vezes ele o tenha revisado, até mesmo ignoram, porquanto desconhecem, a versão que B-P fez deste livro feita para a Índia. Vale o pensamento original de B-P, ou o que alguns acham ser o pensamento original.
Estas pessoas acham que têm uma conexão com o fundador do Escotismo maior que a dos herdeiros de Baden-Powell, achando-se os verdadeiros defensores do legado, quando na verdade mal leram o Escotismo para Rapazes, mas são capazes de repetir frases jamais ditas por Baden-Powell, defender posições as quais B-P era contrário, como se favorável ele fosse, e em nome de uma utopia detratam todos aqueles que divergem ou apontam novas interpretações e outros escritos.
É difícil alcançar o ideário de B-P sem conhecer o homem e o seu tempo, assim como os seus escritos, incluindo aqueles menos conhecidos. E fica ainda mais difícil o entendimento sem que se compreenda que sob a supervisão de Baden-Powell o edifício do Escotismo foi construído a muitas mãos. Desde familiares, como os seus irmãos Warington Baden-Powell, que desenvolveu a modalidade do mar, e Baden Baden-Powell, considerado o criado do Escotismo do Ar; a pessoas outras que foram se somando à obra. Sejam velhos companheiros dos tempos de exército, sejam recrutadas, como Vera Barclay, figura imprescindível na criação do Ramo Lobinho. O que seria de Gilwell Park e da formação de escotistas se não fosse Francis "Skipper" Gidney, o responsável pelo pseudônimo Gilcraft que assina muitas obras incialmente escritas por ele, e mais tarde por sucessores, dentre eles o seu sucessor imediato John Skinner "Belge" Wilson a quem além do trabalho em Gilwell Park e na formação dos escotistas também se dedicou à estruturação do Ramo Pioneiro. Além disto Wilson teve uma atuação na internacionalização do Movimento sendo o responsável pela adoção da flor de lis mundial em seu modelo anterior que era circundado pelos nomes dos continentes ao invés do cabo com o nó direito. E por último, mas não menos importante temos Roland Philipps de quem Baden-Powell disse ser “um fanático pelo ideal escoteiro” e que tinha uma ampla visão.
A simbiose entre B-P e Roland Philips é tanta que atribuem ao fundador a frase de Philips “O Sistema de Patrulhas não é um método pelo qual o Escotismo pode ser praticado, é o único método” ("The patrol system is not one method in which Scouting can be carried on. It is the only method.”) a qual fecha o quinto parágrafo do Capítulo I do seu livro “O Sistema de Patrulhas”, prefaciado por Baden-Powell. Antes deste livro Roland Phillips já havia escrito a série Cartas ao Monitor de Patrulha (1916): O sistema de Patrulhas (Letters to a Patrol Leader : The Patrol System); A Lei Escoteira (Letters to a Patrol Leader : The Scout Laws) e As Provas para Pata Tenra (Letters to a Patrol Leader : The Tenderfoot Test). Para se entender o sistema de patrulhas é imprescindível ler o livro de Phillips.
Quem tem acesso à correspondência de Baden-Powell, especialmente a trocada com seus colaboradores diretos, pode perceber que o Chefe Mundial não se apropriava do Escotismo, estava aberto à colaboração, e constantemente delegava a outros e aceitava de bom grados sugestões, desde a mais simples, como a adoção do anel para o lenço escoteiro substituindo o nó, ou algo maior, como o esquema de formação de adultos.
Baden-Powell era um homem do seu tempo, mas com um olhar para o futuro. Cultivou um círculo de amizades diverso, para além do escotismo e da carreira militar, uma de suas interlocutoras foi Maria Montessori, com quem trocou correspondências, e deixou claro a influência dela em artigo publicado na Headquarter Gazette, o então órgão oficial da The Scout Association. Assim escreveu B-P “O instinto natural do menino é de fazer despontar a própria personalidade por meio de um exercício que chamamos jogo. Ele tem um desejo de realizar-se: quer fazer coisas e superar dificuldades para se sentir diferente.
Montessori demonstrou que encorajando os meninos nos seus desejos naturais, ao invés de instruí-lo naquilo que o adulto pensa que ele deveria fazer, se pode educar sobre uma base mais sólida e mais ampla. É só por tradição que se compreende a educação por meio da fadiga e que enquanto tal seria para o menino um bom adestramento à disciplina e a aplicação. ”
Na pouco conhecida Última Mensagem de Baden-Powell aos Chefes Escoteiros e Coordenadoras Bandeirantes ele reconhece toda a colaboração recebida, e humildemente credita a si como única parte disto o fato de ter encontrado os colaboradores, assim escreveu ele:
Aos meus irmãos Escotistas e Coordenadoras:
Cecil Rhodes disse no final de sua vida (e eu, por minha vez, senti a verdade disso): “Tanto para fazer e tão pouco tempo para fazer”. Ninguém pode esperar ver a consumação, bem como o início, de um grande empreendimento no curto período de uma vida.
Tive uma experiência extraordinária ao ver o desenvolvimento do Escotismo desde o início até o estágio atual. Mas existe um vasto trabalho antes disso. O Movimento só agora está entrando em ação. (Quando falo de Escotismo, incluo também o Bandeirantismo). A única parte que posso reivindicar como minha para a promoção do movimento é que tive a sorte de encontrar vocês, homens e mulheres, para formar um grupo de escol em quem podemos confiar para levá-lo adiante até seu objetivo.
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